Serra da Misericórdia: como o tráfico usa a geografia como ‘fortaleza do crime’ no Rio
02/11/2025
(Foto: Reprodução) Fantástico vai à Serra da Misericórdia, local do confronto mais tenso entre policiais e cr
A Serra da Misericórdia, no Rio de Janeiro, é usada pelo tráfico como uma verdadeira “fortaleza do crime”. O momento mais sangrento da megaoperação policial da última terça-feira (28) ocorreu nesse local.
O Fantástico teve acesso a áudios e vídeos que revelam a estratégia dos criminosos, mostrando o rastro de destruição e as perguntas que, 15 anos após a ocupação policial de 2010, seguem sem resposta.
Terça-feira, 28 de outubro, início da manhã. Uma chuva de tiros é ouvida durante a megaoperação no Rio de Janeiro. Estes são novos registros exclusivos exibidos pela reportagem deste domingo (2), e capturados durante um dos momentos mais tensos da ação. Veja no vídeo acima.
Agentes da CORE, a tropa de elite da Polícia Civil, enfrentam traficantes que tentavam escapar pela área de mata.
Serra da Misericórdia foi cenário central de tática policial
Reprodução Fantástico
Vantagem geográfica
O cume do crime fica no alto da serra, em meio a vários bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro. A Serra da Misericórdia está localizada entre os Complexos da Penha e do Alemão e é dominada hoje pelo Comando Vermelho. Um local, como explicado pelo ex-comandante da PM-RJ, Ubiratan Angelo, em que a altura proporciona uma vantagem tática.
Ele chama essa estratégia de “comandamento”, na qual quem está no alto tem um ângulo de visão muito maior de quem se aproxima. Criminosos camuflados permanecem de tocaia, vigiando a movimentação policial na parte baixa do morro.
Em vídeos, bandidos reagem à dificuldade de blindados subirem a serra. Um deles grita: “Olha lá! O blindado não sobe, não, filhão”. Outro debocha das forças de segurança, dizendo que o veículo estava “de castigo lá embaixo”.
Por esse domínio, a área é alvo frequente de operações policiais que buscam conter o tráfico e evitar a expansão da facção.
O secretário de Segurança Pública do RJ, Victor Santos, afirma que os Complexos da Penha e do Alemão concentram as principais lideranças do Comando Vermelho, cujo QG está no Rio e se expande por outros estados. Já o secretário da Polícia Civil, Felipe Curi, explica que a serra é estratégica porque os criminosos “têm túneis, esconderijos e toda uma estrutura onde podem ficar dias e dias escondidos”.
Gif mostra como polícia cercou suspeitos em megaoperação no rio
Arte/g1
Contexto histórico
Historiadores destacam que quase um milhão de pessoas vive na região, marcada pela violência. Batizada pelos jesuítas no século 19, a Serra da Misericórdia tem importância histórica: forneceu materiais usados na construção de boa parte da cidade, como a Avenida Brasil.
O historiador Rafael Mattoso questiona: “Depois de 15 anos de uma suposta pacificação, quais projetos se consolidaram com a intervenção do poder público?”.
Imagens mostram criminosos entrando na mata antes do confronto de terça, em uma cena muito parecida com da operação de 2010. Em pouco mais de três minutos, dezenas de traficantes buscam refúgio nas diversas trilhas da serra. O ex-comandante Ubiratan Angelo ressalta que essa fuga por múltiplas rotas é um recurso recorrente e oferece grande vantagem a quem conhece o terreno.
O “muro do Bope”
Segundo Felipe Curi, o Bope (Batalhão de Operações Especiais) subiu pela serra enquanto a Polícia Civil e outras equipes empurravam “literalmente esses criminosos para a mata”. Durante a megaoperação, que envolveu 2.500 policiais civis e militares, bandidos queimaram carros para impedir o avanço dos agentes na base da subida. Mesmo sob tiroteio, uma retroescavadeira da PM foi usada para abrir caminho e encurralar os criminosos.
As autoridades chamam essa tática de “Muro do Bope”. Segundo Curi, os traficantes tinham duas opções: se render e serem presos ou serem neutralizados, conforme a reação à polícia.
'Muro do Bope': entenda estratégia da polícia em megaoperação mais letal do Rio de Janeiro
De acordo com as investigações, entre os mortos, havia mais de 50 traficantes de fora do Rio, vindo de regiões como Norte, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.
Chefes estaduais do CV mortos na megaoperação
Arte/g1
Resultados da megaoperação
A operação terminou com 121 mortes, sendo quatro policiais. Pelo menos 78 pessoas tinham envolvimento com tráfico e outros crimes. O secretário da PM, coronel Marcelo de Menezes, informou que o confronto durou das 6h às 21h, com intensa resistência.
Na manhã seguinte, o Fantástico encontrou barricadas e marcas de incêndio nas ruas. Refazendo o trajeto das forças de segurança, a reportagem registrou marcas de tiros em troncos de árvores e cápsulas no chão, indicando onde os feridos se concentraram.
Na madrugada de quarta-feira (29), moradores retiraram corpos encontrados na mata. Não houve perícia no local, e os corpos foram enfileirados em uma praça.
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, determinou neste domingo (2), que o governo do Rio preserve todos os elementos materiais da operação, como as perícias. O pedido partiu da Defensoria Pública da União, após a Defensoria Estadual ser impedida de acompanhar presencialmente os exames nos corpos. Moraes é o relator da ação que discute operações nas favelas (ADPF 635).
O governo do Rio disse que todas as informações, incluindo os laudos periciais, constarão nos autos do processo e estarão acessíveis às partes envolvidas, e que todo o trabalho é acompanhado pelo Ministério Público.
ISSO É FANTÁSTICO
O podcast 'Isso É Fantástico' está disponível no g1 e nos principais aplicativos de podcasts, trazendo grandes reportagens, investigações e histórias fascinantes em podcast com o selo de jornalismo do Fantástico: profundidade, contexto e informação. Siga, curta ou assine o 'Isso É Fantástico' no seu tocador de podcasts favorito. Todo domingo tem um episódio novo.