Vacina contra herpes-zóster pode reduzir risco de demência em até 20%, mostra estudo com 280 mil pessoas
12/12/2025
(Foto: Reprodução) Beber álcool aumenta risco de demência mesmo quando o consumo é pequeno, aponta estudo
Um desenho estatístico improvável — criado sem intenção, a partir de uma regra administrativa do Reino Unido — acaba de oferecer uma das evidências mais fortes até hoje sobre a ligação entre infecções virais e declínio cognitivo.
Um estudo publicado na Nature analisou a implementação da vacina contra herpes-zóster no País de Gales e encontrou um resultado que chamou a atenção da comunidade científica: quem recebeu a imunização teve cerca de 20% menos risco de desenvolver demência ao longo de sete anos.
O achado surgiu porque o sistema britânico definiu que apenas pessoas nascidas a partir de 2 de setembro de 1933 teriam direito à vacina, criando uma divisão quase aleatória. Isso permitiu comparar indivíduos praticamente idênticos — com uma diferença de apenas uma semana de nascimento — em relação a um fator-chave: a probabilidade de ter sido vacinado.
Depois de ajustar análises e repetir modelos, os autores observaram que a proteção contra demência não se explicava por maior acesso ao sistema de saúde, por diferenças socioeconômicas ou por outros comportamentos de prevenção.
O efeito se manteve mesmo quando os pesquisadores ampliaram ou estreitaram janelas de análise, e não apareceu para outras doenças crônicas, reforçando a consistência estatística do resultado.
Vacina contra herpes zoster
Reprodução/EPTV
O que pode explicar essa proteção
Infectologista do Lavoisier, Maria Isabel de Moraes Pinto avalia que o trabalho se apoia em três mecanismos possíveis — todos plausíveis e compatíveis com o que a literatura já descreve.
O primeiro envolve reduzir reativações clínicas e subclínicas do vírus varicella-zóster, que permanece latente no organismo por décadas. Mesmo quando não causam sintomas, essas reativações silenciosas podem desencadear respostas inflamatórias repetidas, e essa inflamação crônica é vista como um dos motores da neurodegeneração. Para ela, esse é o mecanismo mais coerente com as evidências atuais.
Outro caminho possível é um efeito imunomodulador inespecífico — uma espécie de “treino” do sistema imune provocado por vacinas de vírus atenuado, como a usada no estudo.
A pesquisadora relembra que esse tipo de resposta já foi observado em outras imunizações e pode influenciar vias biológicas que extrapolam a proteção contra o patógeno original.
O estudo também sugeriu que quem tratou o herpes-zóster com antivirais teve risco menor de demência do que quem não tratou, reforçando a hipótese de que controlar a replicação viral, por qualquer via, reduz danos cumulativos.
Herpes-zóster
TV Globo/Reprodução
Vírus, inflamação e proteínas tóxicas
Para o neurocirurgião Mateus Tomaz, os resultados conversam com o que a neurologia já sabe sobre como a demência se desenvolve. Hoje, entende-se que o processo envolve três pilares: inflamação crônica no cérebro, lesões nos vasos e acúmulo de proteínas anormais, como amiloide e tau.
Nesse contexto, vírus neurotrópicos como o varicella-zóster podem funcionar como um gatilho repetido. A cada reativação — mesmo as silenciosas — o vírus ativa a microglia (as células de defesa do cérebro), irrita os vasos sanguíneos e estimula mecanismos que favorecem a deposição dessas proteínas tóxicas.
Ou seja: ele alimenta exatamente as engrenagens que aceleram a neurodegeneração.
A interpretação é compartilhada pelo neurocirurgião Helder Picarelli, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Para ele, cada reativação viral funciona como um “gatilho inflamatório”, intensificando o estresse cerebral e favorecendo o acúmulo de proteínas tóxicas — um cenário compatível com a fisiopatologia da demência.
Os dois especialistas concordam que o resultado não prova causalidade definitiva, mas se encaixa em um corpo crescente de pesquisas que investigam a participação de vírus na aceleração do Alzheimer e de outras demências.
Um dos padrões mais marcantes foi a diferença por sexo: mulheres se beneficiaram mais da vacinação.
Adobe Stock
Proteção aparece depois de um ano — e isso faz sentido
O efeito da vacina só começou a aparecer depois de mais de um ano, o que, segundo Tomaz, é coerente com a biologia das doenças neurodegenerativas, que se constroem ao longo de décadas. Um impacto imediato seria improvável.
Picarelli acrescenta que, embora viés de detecção sempre seja uma preocupação — já que pessoas vacinadas podem procurar mais cuidados —, o estudo fez análises que desarmam essa explicação simples, como comparar diferentes frequências de uso do sistema de saúde.
Um dos padrões mais marcantes foi a diferença por sexo: mulheres se beneficiaram mais da vacinação.
A interpretação mais provável, apontam os especialistas, está na própria biologia — mulheres têm respostas imunológicas mais intensas, maior prevalência de demência em idades avançadas e uma trajetória distinta de neuroinflamação, o que ampliaria tanto o risco de dano quanto a oportunidade de proteção.
E isso muda algo na recomendação de hoje?
Ainda não.
Os três especialistas são unânimes ao afirmar que o estudo é altamente robusto do ponto de vista estatístico, mas não substitui ensaios clínicos randomizados.
Além disso, o Reino Unido usou a vacina viva atenuada (Zostavax), enquanto o Brasil utiliza majoritariamente a recombinante (Shingrix), que tem mecanismos imunológicos diferentes e não pode ser automaticamente extrapolada para o mesmo efeito.
Para Picarelli, qualquer mudança de diretriz ainda está distante. Ao mesmo tempo, ele ressalta que a vacina já deveria ser mais amplamente utilizada pelos benefícios bem estabelecidos — prevenção de zóster, neuralgia pós-herpética e complicações graves em idosos.
E no futuro? Pode virar estratégia de prevenção de demência?
Se os resultados forem replicados em diferentes países, populações e tipos de vacina, os especialistas consideram possível que a imunização contra zóster entre no pacote de medidas populacionais de prevenção de demência — ao lado de controle de fatores vasculares, sono, audição e estímulo cognitivo.
Tomaz avalia que uma intervenção simples, segura e de baixo custo, com efeito preventivo populacional, teria impacto expressivo.
Picarelli vai além: se confirmado, seria um dos efeitos preventivos mais potentes já observados em uma intervenção não farmacológica.